Ela é alegre e carismática. Mas, um tiro à queima-roupa por transfobia, em pleno Elevador Lacerda, quase pôs fim ao talento e à vida da mulher trans e artista de rua, Babalu Jacaré. A tentativa de homicídio aconteceu em 12 de dezembro do ano passado. Segundo a vítima, o disparo teria sido feito por um agente de segurança pública. “Ele me deu um tiro exclusivamente por não gostar de mulher trans. Perguntou por que eu estava vestida de mulher. Disse que Jesus tinha me feito homem e falou que eu tirasse o espírito da Pomba Gira que estava em mim”. Hoje, assistida pelo Ministério Público, Babalu tenta superar o trauma, a cicatriz enorme no abdômen, e segue vendendo sua arte no transporte público e em frente aos bares de Salvador.
Artista Babalu Jacaré. Foto: Arquivo pessoal
O caso relatado acima, infelizmente está longe de ser uma ocorrência isolada no Brasil. Por isso, neste 17 de maio – Dia Internacional Contra a LGBTfobia – a ADUNEB, por meio da pasta de Gênero, Etnia e Diversidade, coordenada pelo professor João Pereira Oliveira Júnior, traz esta reportagem especial no intuito de contribuir com o debate e a necessidade de lutar por essa comunidade que segue oprimida. Segundo a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), em 2023, o número de assassinatos de transexuais, no país, cresceu cerca de 10%, em relação a 2022. Os dados evidenciam 145 homicídios, além de dez suicídios. O relatório ressalta que o Brasil, pelo 15º ano consecutivo, foi o país que mais matou pessoas trans em todo o mundo.
As pesquisas da ONG Grupo Gay da Bahia (GGB) referentes à violência contra à comunidade LGBTQIA+ reforçam o cenário de violência e preconceito. Em 2023, foram 257 assassinatos de transgêneros, travestis, homens gays, lésbicas e bissexuais. Os dados foram divulgados em janeiro deste ano.
A presidenta da ANTRA, Keila Simpson, mostra-se preocupada com a realidade imposta. “A gente assiste estarrecida as investidas cruéis que têm acometido a população LGBTQIAPN+. É um processo de avanço do extremismo político da extrema direita, do fanatismo religiosos. Não vemos nenhuma política tão efetiva que vá combater (o preconceito e a violência), nenhuma campanha direcionada à população”, lamenta. Por sua atuação militante, em abril deste ano, a UERJ homenageou Keila concedendo-lhe o título de doutora Honoris Causa.
Foto: Arquivo pessoal / redes sociais
Keila Simpson durante a homenagem em que recebeu o título Honoris Causa
Emprego
O mercado de trabalho se configura como mais um espaço hostil e de preconceito ao público LGBTQIAPN+. Formada em Educação Física, em 2013, Camile Nascimento permaneceu empregada até 2016, momento em que iniciou a transição de gênero e não teve mais oportunidades na área. Ela afirmou que mesmo diplomada há cinco anos, perdeu uma seleção de emprego para um graduando do curso. “O homem disse que gostou muito do meu trabalho, só que não me chamou. Ali, ficou nítida a violência institucional e a transfobia”, comentou Camile.
Devido à falta de oportunidades, muitas pessoas são obrigadas a aceitar empregos em que seus corpos se tornam invisíveis, a exemplo do telemarketing. Camile Nascimento relata que também já passou por esse setor e, mesmo assim, sofria preconceito por não respeitarem seu nome social. Atualmente, sua remuneração vem da venda de conteúdo adulto em plataformas da Internet. Ela é estudante da cota trans, do Curso de Serviço Social na UFBA.
Foto: Arquivo pessoal
Camile Nascimento luta contra o preconceito no mercado de trabalho
Pesquisa em âmbito nacional divulgada, em junho de 2022, mostrou que uma em cada quatro pessoas trans estava desempregada no país, sendo esse o maior índice entre as comunidades LGBTQIAPN+. Os dados são da consultoria Mais Diversidade, entidade que atua como agente de transformação social.
Preconceito na academia e na arte
Enraizado na sociedade o preconceito acontece inclusive em setores que, em tese, são valorizados pelas organizações de esquerda como núcleos de resistência das pautas progressistas. Cantor, compositor e professor do Campus da UNEB de Alagoinhas, Vércio Gonçalves Conceição relatou à reportagem o preconceito sofrido nas duas áreas.
Quando foi professor de uma faculdade privada, de Salvador, sofreu perseguição intensa por um aluno já adulto, pai de família. O estudante, mesmo sem ter razão, teve o apoio da coordenadora do curso, que o incentivou a abrir um processo administrativo, o qual não teve sequência por falta de concretude. “Ele não me aceitava porque eu já estava naquele momento, ano de 2017, me colocando como um homem trans. Era uma pessoa trans no lugar de professor, de formador dele”, ressalta Vércio.
Foto: Arquivo pessoal
Cantor, compositor e professor universitário Vércio Conceição
No universo artístico, o preconceito também deixou marcas. Segundo o docente, inúmeras vezes foi cobrado para se feminilizar no palco. Também afirma ter sido excluído de projetos por ter aparência masculinizada. “Com o tempo eu cheguei a adquirir um comportamento muito tímido. Eu fechava o meu olho e cantava, como se naquele momento, estivesse aparecendo só minha voz e apagando o meu corpo”.
Família
De acordo com as fontes ouvidas pela reportagem, não é raro o núcleo familiar tornar-se outro espaço de violência. Assim aconteceu com Andrezza Belushi, Coordenadora do Projeto SustentabilidadeTrans - Assistência e Apoio às Travestis e Pessoas Transexuais em Vulnerabilidade Social, em Salvador. Ela comenta que na juventude, sem emprego, foi obrigada a se prostituir. Andrezza é a mais velha de sete filhas e filhos. Após o falecimento da mãe, o pai e os quatro irmãos homens tentaram expulsá-la de casa. Devido à sua resistência, tentaram assassiná-la duas vezes. O caso resultou em três boletins de ocorrência e um processo no Ministério Público.
Foto: Arquivo pessoal
Andrezza Belushi escapou de duas tentativas de assassinato
Caminhos a seguir
Sobre os caminhos da luta contra a LGBTfobia, o professor Vércio observa a universidade como um lugar mais seguro do que vários outros setores da sociedade. Nesse sentido, o docente demonstra preocupação com as políticas de permanência estudantil para a comunidade em questão. Ele afirma pensar a experiência da pessoa trans na universidade de forma interseccional. As pessoas trans, negras, das classes populares são as que mais têm necessidades, enfrentam problemas econômicos para se manter na universidade. Para Vércio Conceição é preciso pensar em uma inclusão efetiva e para além das cotas. “O que as instituições têm pensado para recepcionar esse corpo trans? Entrar pelas cotas e ter bolsa de auxílio financeiro é um pontapé inicial, mas e a política de uso do banheiro para pessoas trans? O corpo trans que se identifica com a masculinidade, pode ir de forma segura utilizar o banheiro masculino? E as feminilidades? Ela pode ir seguramente para o banheiro feminino ou existe uma outra opção de inserção? E o setor administrativo? Tem sido preparado para respeitar as identidades de gênero?”, questionou o docente.
Qualificar para inserir
Andrezza Belushi defende a ampliação, em todos os estados e no Distrito Federal, dos projetos de qualificação profissional como uma importante ação de inserção das transexuais e travestis de baixa renda na sociedade. Programas que ofereçam cursos, qualifiquem, encaminhem para estágios em empresas com bolsa-auxílio. Assim, as possibilitando ter condições financeiras de sair da prostituição e da vulnerabilidade social. Como exemplo, ela cita o programa Transcidadania, criado em 2015, pelo governo de Fernando Haddad (PT), na cidade de São Paulo.
Políticas públicas
De acordo com Keila Simpson, para reverter os altos índices que LGBTfobia no Brasil são necessárias ações em dois caminhos: companhas de comunicação e políticas públicas. “É preciso que isso seja desenvolvido e articulado entre os entes federados, os organismos que trabalham com a política e com os movimentos sociais. Constituindo documentos e ideias, proposições para que a gente dialogue com a sociedade e compreenda a importância da segurança pública e da inclusão social para a nossa população”.
Embora reconheça a importância e apoie o Governo Lula, a presidenta da ANTRA faz críticas. “Passamos seis anos em letargia: dois anos do Governo Temer e quatro de Bolsonaro. Obviamente que é muito importante termos atualmente uma Secretaria Nacional LGBT, mas é mais fundamental ainda que o governo brasileiro, um governo democrático e popular possa assumir e cumprir as pautas que a gente há tanto tempo vem reivindicando. E eu ainda não vi, de fato, uma sinalização por parte do governo em relação a nossa população”, finalizou Keila Simpson.