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Matéria especial - A luta das populações negras por moradia, ocupação do espaço urbano e dignidade



 Nesse mês da Consciência Negra, as discussões trazidas por diversos grupos dos movimentos sociais evidenciam que, 134 anos após a abolição da escravatura, o racismo estrutural no país continua a ser um dos principais desafios para quem almeja uma nação realmente democrática. Dentre os vários aspectos que servem de parâmetro para comprovar as distintas realidades raciais do Brasil, estão as questões relacionadas à política de moradia à população negra.

Morar não é apenas estar abrigado em uma casa, é necessária infraestrutura física além de uma série de políticas públicas que permitam que um lar seja sinônimo de dignidade. Para o professor Sandro dos Santos Correia, doutor e pesquisador nas áreas de planejamento territorial e desenvolvimento social, existe uma discrepância na qualidade dos serviços públicos oferecidos à população quando se compara o que se destina à população que ocupa o centro de Salvador com o que se reserva às pessoas que habitam as periferias. Tal discrepância configura segregação espacial e pode ser comprovada na comparação de serviços como oferta de linhas de transporte coletivo, coleta de lixo, saneamento básico, asfaltamento, escolas públicas, postos de saúde, entre outros.

 Sobre a realidade das políticas públicas voltadas à moradia da população negra, em Salvador, sobretudo para os grupos de baixa renda, Sandro Correia, observa que a desigualdade ainda surge como consequência do período escravocrata e dos processos de exploração e colonização que, posteriormente, resultaram no atual modelo capitalista neoliberal. Para o pesquisador, embora existam avanços a partir da Constituição de 1988, a exemplo da Lei do Plano Diretor das Cidades e de programas como o “Morar melhor” e o “Minha casa, minha vida”, ainda há um grande déficit na oferta de habitação para a população negra. “O setor público não consegue tratar a população negra de acordo com as últimas mudanças da legislação, que são consideradas recentes, em razão das marcas da colonização e desses mais de 300 anos de escravidão”, afirma Correia.

A pesquisa divulgada pelo IBGE, neste mês de novembro, reforça a análise do professor Correia de que a segregação espacial imposta à população negra está relacionada com a desigualdade econômica. Segundo os dados, a renda mensal média da população branca é praticamente o dobro da renda obtida pela negra. Em 2021, enquanto o rendimento per capita de pessoas brancas foi de R$ 1.866 mensais, o das pessoas pretas foi de R$ 965,00 (51,7% da renda dos brancos) e o das pessoas pardas foi de R$ 945 (50,6% da renda dos brancos).
                                                                                                                                                                                              Foto: João SantoS
Contrastes urbanos de moradia provocados pelo neoliberalismo
Gentrificação

Nas questões relacionadas à moradia, devido ao fato de o modelo capitalista neoliberal ter o lucro como a base das relações, a gentrificação é um procedimento intrínseco à segregação espacial. A gentrificação é um processo em que a população em vulnerabilidade social e economicamente à margem da sociedade acaba sendo expulsa de seus territórios, em favor da requalificação urbana, da especulação imobiliária e consequente valorização da região. “A lógica capitalista faz com que haja uma seleção dos consumidores”, comenta Correia.

Segundo Sandro Correia, o termo gentrificação surgiu em Londres, em 1964, pela socióloga britânica Ruth Glass, após a análise dos processos de transformações imobiliárias em alguns bairros da capital britânica. A gentrificação tem como uma de suas funções fragilizar as populações pobres historicamente e setorialmente. “Umas das estratégias utilizadas é a criminalização de alguns espaços através do tráfico de drogas e do aumento da violência, inclusive criando rótulos negativos para alguns segmentos da população, assim, atingindo as comunidades negras, principalmente as que estão nas periferias, nas áreas menos abastadas”, explica o professor. 

Conferência de Berlim 

A segregação espacial e a gentrificação como imposição à comunidade negra tem como uma de suas principais origens históricas a Conferência de Berlim. No evento, ocorrido entre 1884 e 1885, 14 potências europeias do século XIX se reuniram para acordar regras sobre a ocupação do continente africano. Para Sandro Correia, é a partir desse episódio que se verticaliza a relação entre as civilizações europeias, africanas e todas as civilizações do planeta.

“Há uma influência muito grande dessa conferência na organização desse pensamento, como se fosse quase uma naturalização de que o negro é inferior e o branco é superior. Essa é uma questão complexa, de como as pessoas são envolvidas nesse imaginário de verticalização”, analisa Correia.

Caminhos para se minimizarem os problemas

Sobre os caminhos para se minimizarem os problemas relacionados à política de moradia voltada à população negra, o pesquisar Sandro Correia é favorável aos programas de emprego e renda. Além disso, ressalta a importância das ações desenvolvidas por entidades como a Sociedade Protetora dos Desvalidos, que, há 190 anos, atua contra o desequilíbrio social e econômico provocado pelo período escravocrata. Ele também cita a necessidade de fortalecimento dos terreiros de candomblé e de visibilização dos projetos sociais desenvolvidos por instituições como Olodum, Ilê Aiyê, Filhos de Gandhy, entre outras. Assim, Correia finaliza: “São instituições que representam o povo negro e sabem, de maneira objetiva, mais profunda, os problemas dessa comunidade. As ações dessas instituições precisam estar associadas às políticas públicas voltadas para a população negra para que tais políticas realmente possam ser efetivas”.