“Reforma” administrativa: o fim dos serviços públicos e do futuro no Brasil
Quisera fosse apenas uma granada a proposta de “reforma” administrativa que o desgoverno Bolsonaro enviou para o Congresso Nacional, porque em realidade trata-se de uma verdadeira bomba atômica contra todo o serviço público brasileiro. Concebida pelo Ministério da Fazenda, liderado pelo neoliberal pinochetista Paulo Guedes, a proposta segue a tônica, também difundida pela grande mídia, de criminalização das/os servidoras/es e da privatização geral dos serviços públicos.
Não se trata de exercício retórico aqui, a emenda constitucional enviada é uma representação bem acabada do que é o horror. Nem o desgoverno, no fundo, deve acreditar que ela possa ser aprovada como está. Por isso há muitos disparos de destruição. Algum estrago que favoreça os rentistas da dívida pública em prejuízo das/os trabalhadoras/es e do povo que acessa os serviços públicos deve ser produzido.
Aqui é preciso não se enganar: se a proposta primeiro se dirige ao funcionalismo público e serviços federais, ela automaticamente, até por atacar o regime jurídico único, será em seguida alvo de readequações nas esferas estaduais e municipais. Aliás, esse mesmo roteiro já foi desenvolvido recentemente. A “reforma” da previdência a nível federal também gerou reformas em cascata. Na Bahia, inclusive, vimos os estragos acarretados logo em seguida com a vergonhosa postura do governo Rui Costa (PT).
Há muitos aspectos em questão na Emenda Constitucional enviada ao Congresso, dois deles, consideramos, merecerem maior destaque: 1) o já mencionado fim do regime jurídico único, com a liquidação adjunta da estabilidade funcional; 2) o princípio da subsidiariedade junto às alterações no artigo 37 da Constituição, que pretendem fazer com que o serviço público possa ser prestado por empresas privadas quando possível.
Ninguém duvida que há um descontentamento com os serviços públicos prestados no país e eles podem ser melhorados, no entanto, o que esta proposta faz não é buscar corrigir erros e criar mecanismos que avancem no aperfeiçoamento destes, ela busca precarizar e demolir a oferta de infraestruturas que a população têm hoje o direito de acessar gratuitamente.
Mais uma vez é preciso frisar: o horror! É disto que se trata a “reforma” administrativa. Sua real motivação é reduzir despesas e investimentos nos serviços públicos, vulnerabilizando para isso as/os funcionárias/os públicas/os, a fim de produzir mais caixa para bancar o pagamento de títulos da dívida detidos por um punhado de rentistas. Essa patota, que controla também o que difunde a mídia, já abocanha quase metade do orçamento, como denuncia há tempos a Auditoria Cidadã da Dívida Pública.
Como se não bastasse liquidar com um dos pilares fundamentais do serviço público, a estabilidade funcional, a proposta prevê ainda formas de contratação bastante subjetivas que não se equiparam jamais ao crivo impessoal do concurso público. Se aprovado, este desmonte do que ainda há do “comum” no país é líquido e certo. Isso para não falar ao estímulo à contravenção funcional, já que para as/os servidoras/es será o reino do assédio e da precariedade. Sim, porque a “reforma” administrativa amplia o poder discricionário do Executivo para extinguir cargos, funções, benefícios e mesmo autarquias inteiras como as universidades!
Ao ampliar o rol das contratações de temporários e estimular o aumento de terceirizações, praticamente sanciona e coloca as contratações de tipo REDA, como já ocorrem em overdose na Bahia, como as de tipo corrente. Numa manobra patética, a “reforma” protege apenas as ditas carreiras consideradas de Estado como juízes, militares, promotores e parlamentares. Uma artimanha evidente do desgoverno por temer uma impugnação jurídica, além do aceno de práxis para a turma das baionetas e os fisiologistas de Brasília.
Ao propugnar formas de avaliação subjetivas para efetivação do servidor/a, ou apreciação de seu desempenho, a reforma abre espaço para perseguições. Desligamentos disfarçados, cujas reais razões são de ordem político-partidária ou por conta de atividades sindicais. A reforma prejudica ainda a compreensão segundo qual a dispensa do empregado público deve ser motivada. Precarizando sua condição, converte as/os funcionárias/os públicas/os em títeres de governantes e não em servidoras/es do Estado, cuja a missão é servir ao povo cumprindo com o respeito à lei.
O esforço para retirar o entulho de falácias e manipulações socado diariamente pela grande mídia brasileira, que está apoiando entusiasticamente esta reforma, não será pequeno. Tal como o “queridinho” Paulo Guedes já pronunciou, a imprensa vem tratando as/os funcionárias/os públicas/os como parasitas. Os mesmos aliás que, por exemplo, colocam suas vidas em risco e atuam dedicadamente para que a pandemia da Covid-19 não ceife ainda mais vidas no país desgovernado, ou pesquisadoras/es de nossas universidades que buscam desenvolver tecnologias e conhecimento para enfrentar os problemas de nossa sociedade.
É também um grande sarcasmo que a reforma atinja tão somente a maior parte das/os servidoras/es públicas/os e preserve aqueles que detém grandes salários. A maior parte das/os funcionárias/os públicas/os (57%) tem rendimentos concentrados na faixa de até 4 salários mínimos, e em nível municipal este número chega a quase 75%, segundo dados da Relação Anual de Informações Sociais. É ridículo ainda falar que a máquina pública brasileira está “inchada”, o número de servidoras/es públicas/os em relação à população brasileira está abaixo do verificado na maioria dos países desenvolvidos.
Além disso, se a intenção é atuar na questão fiscal, o governo poderia avançar por outras frentes, pautando a taxação de grandes fortunas, por exemplo, ou exigindo o cumprimento efetivo do teto do funcionalismo, do qual juízes e militares de alta patente parecem estar dispensados recebendo salários que ultrapassam em diversas vezes os cerca R$ 40 mil estabelecidos como teto máximo. Isso para não falar do combate efetivo à sonegação e da arrecadação sem perdão dos tributos milionários que diversas entidades devem aos cofres públicos, ou ainda de uma reforma tributária progressiva que incida sobre renda e lucros e desonere o consumo na ponta. Há alternativas!
Não, esta “reforma” administrativa não tem a menor preocupação com o país e seu destino. Trata-se do horror, como é preciso que se recorde insistentemente. É nada mais do que o saque ao bem comum, representado na oferta dos serviços públicos que devem ser melhorados e não rebaixados e demolidos. É a velha disputa pelos recursos públicos em favor de uma minoria delinquente e inconsequente, que priva o país de uma jornada de caráter redistributivo capaz de enfrentar todo o já enorme passivo de assimetrias e injustiças sociais.
Há muitos outros pontos nefastos desta “reforma” que não podem entrar no escopo deste curto texto. Conclamamos as professoras e os professores da UNEB, além de todas/os as/os servidoras/es públicas/os, a tomarem pé desta proposta e a se prepararem desde já para uma enorme batalha contra o que pode ser o golpe de misericórdia no futuro deste país. Sim, porque no limite estamos falando de fim dos serviços públicos! O fato da proposta se dirigir ao serviço público federal não nos deve deixar inertes, não sejamos estúpidas/os, depois deste grande dique, seremos nós, servidoras/es dos Estados e Municípios as/os próximas/os a serem inundadas/os.
Nenhuma grande conquista ou resistência é fruto de um punhado de iluminadas/os. É uma construção coletiva. Somos beneficiárias/os de inúmeras batalhas vencidas no passado e precisamos compreender o momento histórico que vivemos com bastante seriedade. Nossa própria humanidade só se afirma quando também assumimos o compromisso solidário com as futuras gerações. O clima de fim de mundo e de curto prazo com que tudo é tratado no neoliberalismo não nos pode cegar. Não será a mera lógica do ainda não está mexendo comigo que nos auxiliará a atravessarmos a grave situação que estamos enfrentando.
Coordenação ADUNEB