Salvador, sexta-feira, 7h30. O amanhecer calmo do bairro periférico de São Cristóvão daquele dia foi brutalmente interrompido. Um jovem, negro, pobre, de apenas 16 anos, morador da Rua Vila Verde, teve a conversa com a vizinha cortada. Após ser encapuzado e amarrado, foi levado à força por vários homens em dois carros. O estudante Davi Fiuza, adolescente de riso fácil e amigo de muitos no local, não mais seria visto. Seu corpo nunca foi encontrado. Era 24 de outubro de 2014. A morte do jovem ainda requer explicação. É investigada pelo Ministério Público e pela Delegacia de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP). A história de Davi é só uma entre os 693.076 registros de desaparecidos no país, entre 2007 e 2016, sendo a maioria pretos e pardos. Os dados são do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Davi e outros milhares de negros e negras desaparecidos e assassinados nas periferias não podem se tornar apenas dados estatísticos. O Dia da Consciência Negra – 20 de novembro, com pouco a comemorar, deve servir para ampliar as discussões sobre o racismo e, ainda reforçar, que negras e negros, mortos ou vivos, têm voz e direitos a serem respeitados. A história do adolescente de São Cristóvão, arrancado do seio familiar, comprova a força do racismo no país. Segundo dados da Secretaria de Segurança Pública do Estado da Bahia (SSP-BA), em 2014, ano do desaparecimento de Davi, 76,3% das vítimas no estado, de crimes violentos letais intencionais, foram cometidos contra pessoas pretas e pardas.
Arquivo particular: Rute Fiuza
Davi Fiuza - Levado de frente de casa. Desaparecido desde 2014
As informações divulgadas pela imprensa, sobre as investigações do caso Davi, sugerem que uma das hipóteses seria a participação de policiais militares, que teriam sequestrado, assassinado e ocultado o cadáver do estudante. A ação dos PMs teria ocorrido como um desafio de formatura dos policiais. Rute Fiuza, a mãe do jovem, afirma não ter dúvidas da autoria do crime. “As investigações e as provas chegaram a conclusão, na DHPP, que quem levou Davi foram policiais da 49ª. Foi a Polícia Militar”, enfatiza. Em nota, solicitada pela reportagem, a SSP-BA declarou que “As investigações sobre o desaparecimento do jovem Davi Fiuza estão em fase final, aguardando apenas os resultados de alguns laudos periciais complementares que são de fundamental importância para o indiciamento dos envolvidos”.
Os dados do Mapa da Violência 2016, que apresentam informações de 2014, mostram que de um total de 31.320 Homicídios por Arma de Fogo (HAF), em todo o país, 29.813 tiveram como vítimas pretos e pardos. A classificação da cor seguiu os padrões do IBGE de autodeterminação. A mesma pesquisa evidencia que, de 2000 a 2014, no ranking nacional da taxa de homicídios, a Bahia saltou da 15ª para a 8ª colocação, indo de 11,7 HAF a cada 100 mil habitantes para 30,7 HAF. Já a comparação entre 2004 a 2014, de HAF na Bahia, mostra um crescimento de 179,3%, pulando de 1.590 casos para 4.441.
Outro crime de repercussão internacional contra jovens de Salvador foi a Chacina do Cabula. Ocorrida em fevereiro de 2015, doze amigos de 16 a 27 anos, receberam 88 tiros à queima roupa, disparados pela Polícia Militar da Bahia. Apenas um dos rapazes tinha passagem pela polícia por porte de maconha. Embora o laudo da perícia, divulgado pelo Ministério Público, tenha constatado evidências de execução sumária, em menos de dois meses a 2ª Vara do Júri inocentou todos os envolvidos. Desde então, lutando por justiça, a Defensoria Pública do Estado, familiares das vítimas, Reaja Organização Política e outras organizações de Direitos Humanos tentam reabrir o caso em âmbito federal.
Foto: Rafael Bonifácio / Ponte Jornalismo
Naturalização da violência
Números expressivos que comprovam a violência contra a população negra também estão presentes na pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Segundo a publicação, aconteceram no Brasil oito desaparecimentos por hora nos últimos dez anos. Em média 190 pessoas por dia. A maioria de adolescentes, negros e da periferia.
Mestra em história social, atuando há 17 anos na educação superior e 28 anos na rede básica de ensino de Salvador, Meire Reis, afirma que existe no país uma naturalização da violência, sobretudo, as cometidas contra a comunidade negra, pobre e periférica. Para a professora, essa naturalização é oriunda do racismo. A vida da juventude negra sempre foi vista historicamente como de menor valor, sua morte, violenta ou não, jamais foi vista como um problema, provavelmente, pensada muitas vezes como uma solução para se livrar de jovens que não se enquadravam. “A morte não natural não sensibiliza a todos. Grupos antiaborto gritam a favor da vida, mas não movem um único grão de areia para reduzir a violência contra crianças e adolescentes negros. A morte de parisienses num ataque a Paris teve mais comoção nacional do que o sequestro, estupro ou morte de meninas na Nigéria. As chacinas dentro dos presídios brasileiros, entre outros casos, mostram que as nossas vidas não importam para a sociedade brasileira. São inúmeros os casos que demonstram que essa naturalização tem cor e classe”, explica a professora Meire.
Foto: Agência Brasil
Raça e classe
A diretora da ADUNEB, da pasta de Gênero, Etnia e Diversidade, Ediane Lopes, analisa o racismo no Brasil como fruto da própria constituição do país enquanto nação, um problema originado no período colonial e que, além da raça, também envolve a questão da classe social. “Pessoas ricas que roubam e são corruptas não são assassinadas e dificilmente são presas. Enquanto isso, vemos a população negra, independente se é trabalhadora ou não, ser exterminada nas periferias”, comenta Ediane, que também é professora de história.
A docente desvenda o processo de marginalização social dos negros no país. Para Ediane, quando aconteceu a abolição da escravatura, os negros e negras, vindos forçados da África, foram socialmente excluídos. Grande parte dessa população foi obrigada a morar em cortiços. Daí se originaram as favelas. O resultado desse processo é a marginalização social, a comunidade negra excluída de seus direitos básicos e, portanto, pobre. “A mentalidade racista permanece na sociedade e está encrostada na nossa política, de maneira institucional. O problema ainda foi reforçado no século XIX, a partir do racismo cientifico, da eugenia, ou seja, a tese de limpar o Brasil a partir da mistura da raça branca, com o objetivo de embranquecer o país”, explicou a diretora da ADUNEB.
Foto: Circuito MT
Mercado de Trabalho
O racismo também é facilmente identificado quando se analisa os números do mercado de trabalho. Dados do IBGE, referentes ao estado da Bahia, divulgados nesta sexta-feira (17), que comparam os terceiros trimestres de 2016 e 2017, mostram que os rendimentos dos negros (pretos e pardos) são, em média, apenas 64% do rendimento dos brancos. O mesmo estudo comparativo, entre os terceiros trimestres deste ano e do ano passado, evidencia que a taxa de desocupação da população preta subiu de 16,5% para 17,5%; enquanto a dos brancos, que já era menor, caiu de 13,1 para 12,9%.
Em âmbito nacional, os dados do IBGE apontam que a cada três desempregados no Brasil, dois são pretos ou pardos. Com referência aos rendimentos, os trabalhadores negros, em média, ganham R$ 1.531, o que representa apenas 56% dos rendimentos dos brancos no país, que recebem R$ 2.757.
A questão racial também interfere nos salários dos formados do ensino superior. A pesquisa Características do Emprego Formal da Relação Anual de Informações Sociais (Rais), de 2014, mostrou que a média salarial de um branco com diploma de graduação é de R$ 5589,25. O salário médio de um preto com o mesmo nível de escolaridade é de R$ 3777,39, o que corresponde a uma discrepância de 47%. A análise do recorte por gênero e etnia, do estudo da Rais, referentes a 2014, evidenciou que enquanto o rendimento do homem não negro, em média, era de R$ 2.223,00, o da mulher negra era de R$ 1.705,00; o que representava apenas 53,6% do salário do sexo masculino não negro.
Luta das mulheres negras
Para combater, além do racismo, o machismo no mercado de trabalho e na sociedade, as professoras Meire Reis e Ediane Lopes, novamente ressaltam a importância da luta por meio de um modelo interseccional, ou seja, que leve em consideração, conjuntamente, questões de gênero, raça e classe. Elas explicam que, na pirâmide social as mulheres sempre estão, sob qualquer índice, em um patamar inferior aos homens. Se além de mulheres, elas forem negras, estarão em sua grande maioria localizadas na base dessa pirâmide e, portanto, sendo duramente atingidas por diversos tipos de desigualdade, principalmente, a racial, a de classe e a de gênero.
Resistência
Em recente visita a Salvador, no mês de julho, a ativista feminista Angela Davis, localizou o grupo de mulheres negras da base da pirâmide social, como “a melhor condição de resistência e mudança no Brasil”, após o golpe antidemocrático à presidente Dilma Rousseff. Para Ângela, os números da violência, a superlotação e falência do sistema carcerário, deixaram expostos no país o mito da democracia racial. A luta pautada em gênero, classe e raça, levada à frente pelos movimentos de mulheres negras visa a mudança estrutural da sociedade. “Não queremos ser inclusas em uma sociedade machista, misógina e heteropatriarcal. Se dizemos não à pobreza, não queremos ser contidas dentro de uma sociedade capitalista, que visa o lucro e não o ser humano”, afirmou Angela em uma conferência da Universidade Federal da Bahia.
Foto: Murilo Bereta
Angela Davis durante atividade na Ufba, em Salvador
Empoderamento coletivo
Outra tese defendida por Angela Davis é a da luta por meio do empoderamento coletivo. Segundo as fontes ouvidas pela reportagem, embora muito utilizado atualmente, o conceito de empoderamento precisa ser compreendido e utilizado da maneira adequada, em uma perspectiva realmente coletiva e não individual. Quando se fala em empoderamento deve-se pensar em um amplo contexto, ao qual contemple a posição do indivíduo, do seu grupo e da classe à qual pertence.
De acordo com Meire Reis, homens e mulheres que lutam por seus direitos e conseguem, minimamente, serem ouvidos na sociedade são pessoas “empoderadas”, principalmente, quando conseguem reverter alguns símbolos e usá-los como armas contra os opressores. Como exemplo, Meire cita o alto número de mulheres e homens que deixaram de alisar os cabelos ou raspar as cabeças, passando a ostentar enormes cabeleiras armadas, conhecidas como “black power”. Pessoas que, ao longo do século XX, ouviram nas ruas, escolas, famílias, igrejas, que deveriam raspar ou alisar seus cabelos “ruins”. A mudança é considerada por Meire um fenômeno significativo.
Porém, apesar do avanço na luta pela emancipação do negro, a professora ressalta que ainda será necessária muita luta para, por exemplo, barrar projetos que objetivem proibir o aborto em caso de gravidez oriunda do estupro. “Precisamos estar atentas ao quadro maior em que vivemos, os mais “empoderados” de fato ainda são os donos dos grandes veículos de comunicação, dos que compõe as diversas federações de indústrias e do comércio, do agronegócio entre outros”, ressalta Meire.
Luta
O alerta da professora Meire sobre a dura luta ainda por vir, também ganha respaldo na análise de Ediane Lopes. Para a diretora da ADUNEB, o avanço do totalitarismo no Brasil é um reflexo do que acontece no mundo e precisa ser combatido. Ela defende que o fortalecimento da resistência precisa ocorrer a partir da união de todos os setores oprimidos da sociedade. “Grande parte dos movimentos sociais que discutem gênero e a questão de raça, atualmente, são pessoas que integram a classe trabalhadora. É preciso juntar todos os explorados e quem mais puder vir, inclusive os sindicatos que, em geral, pouco contribuem nesse setor. A luta agora não é contra a direita simplesmente, mas contra a extrema direita, o totalitarismo, o que há de pior dentro do conservadorismo”, diz Ediane.
Luta coletiva que Rute Fiuza, a mãe do jovem Davi, do começo desta reportagem, sabe bem o que representa. Desde que sumiram com seu filho, há mais de três anos, ela se uniu a dezenas de outras mães de todo o país que passam pela mesma tragédia. Juntas, foram do luto à luta militante. Em um grupo de união e solidariedade, com extrema coragem, dão voz aos filhos mortos, denunciam o Estado terrorista, lutam por memória, verdade, justiça e liberdade.
Foto: Anistia Internacional
Rute Fiuza, a mãe guerreira que luta por justiça
Fontes:
Secretaria de Segurança Pública do Estado da Bahia (SSP-BA)
Mapa da Violência 2016
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)
Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Pesquisa Características do Emprego Formal da Relação Anual de Informações Sociais (Rais)
Site El País