Notícias

O lado de cá do muro - Machismo e luta por igualdade de gênero na universidade



 O lado de cá do muro - Machismo e luta por igualdade de gênero na universidade

As bandeiras de luta do Movimento Feminista contra a opressão machista, graças a uma batalha histórica das mulheres politicamente organizadas, atingem boa visibilidade no cenário nacional. A atual ofensiva conservadora de determinados setores sociais, contra os direitos da mulher e da população LGBTTTI é uma evidência de que a luta dos grupos oprimidos avança, incomoda, e as questões de gênero são sim pauta nacional e estão na ordem do dia. Porém, segundo a diretoria da ADUNEB, apesar das conquistas, independente da classe social, do ambiente de trabalho ou do grau intelectual, o machismo continua enraizado na sociedade, inclusive, do lado de dentro dos muros da academia e no exercício diário do fazer ciência. Seja de maneira direta, violenta, ou de forma sutil e traiçoeira, machistas buscam estratégias para impor o preconceito e a desigualdade de direitos.
 
Uma forte evidencia da influência do machismo nas universidades é, ainda hoje, a existência de cursos predominantemente masculinos e outros femininos. As pesquisadoras Maria Eulina Carvalho e Glória Rabay, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), no artigo “Usos e incompreensões do conceito de gênero no discurso educacional brasileiro”, publicado em 2015, mostram que naquela universidade cursos como Engenharia e Física possuem um perfil expressivamente masculino. A Engenharia Mecânica, em 2011, tinha o corpo docente composto por 24 professores e nenhuma professora. Entre os estudantes eram 436 homens e apenas 45 mulheres, o que correspondia a somente 9,4% das vagas da curso. Já a licenciatura em Física possuía 28 professores e só duas professoras. Quanto aos estudantes, existiam 194 homens e 32 mulheres, o que representava parcos 14,2% das vagas. 
 
Neste Dia Internacional da Mulher, para refletir sobre o machismo dentro da academia, a ADUNEB ouviu a experiência de quatro professoras da Uneb, de áreas distintas e diferentes regiões do estado. Mulheres que, independente da opressão, com competência, conquistaram espaço no mundo da ciência, e aqui problematizam sobre o papel do sexo feminino na academia e como esse espaço foi negado à essas por muito tempo.
 
 
Racismo velado
 
Com uma experiência de 28 anos na profissão, a professora do curso de Engenharia Agronômica do Campus de Juazeiro, Grécia Cavalcanti, afirma que o curso do Campus III, em 1988, era composto por 28 professores e 06 professoras. Hoje, quase três décadas depois, o cenário quase não foi alterado, o quadro docente comporta 24 homens e 12 mulheres.
 
Para a professora Grécia, um conjunto de fatores explica a maior procura dos homens pelas ciências exatas, mas um dos pontos de maior relevância diz respeito aos papéis sociais historicamente impostos aos diferentes sexos. “O estímulo ao desenvolvimento da razão e da lógica foi, por séculos, negado às mulheres. Além de responsável por inúmeras tarefas socialmente desvalorizadas, que nos sobrecarregam e nos roubam o tempo, que poderia ser destinado mais livremente à carreira acadêmica ou às ciências, de modo geral, às mulheres era destinado o estímulo da subjetividade. Embora sejam percebidas muitas mudanças e avanços, na academia e, particularmente, em algumas áreas, ainda persiste um cenário de hostilidade ao desenvolvimento intelectual do sexo feminino, embora velado e sutil ”, analisa a docente.
 
O relato da professora Grécia referente à sobrecarga dos afazeres domésticos às mulheres, como um dos obstáculos à igualdade de gênero, é confirmada pelos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad). Segundo matéria publicada no jornal O Globo, em março do ano passado, em 2013, mulheres gastam cerca de 20 horas semanais em atividades não remuneradas voltadas ao lar. Para as mesmas funções, os homens ocupam apenas 5 horas por semana. Enquanto 45% dos homens se dedicam às questões domésticas, 85% das mulheres dizem se incumbir dessa tarefa (leia mais). Tal cenário impacta também o trabalho na universidade, espaço em que os homens possuem mais condições e tempo de se dedicar ao trabalho acadêmico e científico.
 
 
As armadilhas da sutileza machista na academia também são relatadas pela professora Sandra Pacheco, do Departamento de Ciências da Vida, do Campus de Salvador. Com uma respeitada carreira profissional de 26 anos, ela relembra do início. “Quando comecei, as atividades do cotidiano, como fazer atas, relatórios, redação de documentos, etc, ficavam sempre ao encargo das mulheres, pois demandavam tempo e paciência. Os homens discutiam, traziam ideias, mas não se predispunham ao trabalho. Eu sempre questionei isso. A princípio parecia uma valorização, por acharem que as mulheres eram mais organizadas, concentradas. Mas, na verdade, era subliminarmente uma exploração do trabalho feminino, reprodução da vida doméstica. Hoje observo que isso está melhor, mas ainda existe na Uneb”, ressalta a professora do DCET, do Campus I.
 
Atualmente a professora Sandra Pacheco ministra aulas nos cursos de Nutrição e Enfermagem. Ao contrário do que acontece nas engenharias, os dois cursos citados são predominantemente femininos, o que também é resultante de uma lógica machista. De acordo com Sandra, até cinco anos atrás, o curso de Nutrição era 100% feminino. Na compreensão da professora Pacheco, isso ocorre porque a carreira de nutrição é determinada às mulheres, devido à proximidade com a cozinha, casa e cuidado com a família. “Pertence a uma construção social claramente associada ao papel da mulher na esfera doméstica, dentro de uma sociedade machista, em que o homem é o provedor, vai para rua trabalhar e à mulher cabe as tarefas domésticas como cozinhar. Parece que alimentação é um tema naturalizado às mulheres quando, na verdade, é um papel construído socialmente”, declara a professora. 
 
Sobre a imposição machista da divisão sexual do trabalho, a docente do curso de Direito do Campus de Valença e militante do Movimento Feminista, Jalusa Arruda, traz reflexões à discussão. “A socióloga feminista, Danièle Kergoat, diz que a divisão sexual do trabalho articula dois elementos, que são a separação e a hierarquização. O primeiro, por própria sugestão do termo, cria uma distinção, separa o que deve ser trabalho desenvolvimento por mulheres e por homens; o segundo cria uma escala valorativa, onde o que é trabalho desenvolvido por homens vale mais do que o das mulheres. Esses dois elementos são definidos pela essência biológica e acabam por naturalizar as desigualdades, desconsiderando-a como histórica e, portanto, construída a definição do masculino e do feminino”, explica Jalusa. Para a professora, enfrentar a divisão sexual do trabalho é primordial para uma sociedade igualitária.
 
 
Rompendo paradigmas
 
Docente do curso de Educação Física do Campus de Jacobina, Rita Roxane, diz que o corpo efetivo do curso é composto por oito homens e três mulheres. Para a professora, a predominância masculina vem da origem da formação dos cursos de educação física, em que a sociedade moralista da época pautava o perfil do profissional, o que foi passado de geração à geração. “Hoje temos conseguido romper com os antigos pensamentos da área, mas até pouco tempo, os tipos de exercícios físicos e métodos ginásticos presentes na educação física, aos homens, cabiam o ser forte e ágil. Já às mulheres, vistas como o sexo frágil, os métodos ginásticos eram restritos no uso da força física. Isso determinava dentro da profissão quais as áreas que as mulheres deveriam seguir. Esse é um processo de transformação social e cultural que temos conseguido com muita luta e passar dos anos”. 
 
Apesar que constatar avanços, a professora tem uma visão crítica ao machismo na academia. Segundo Rita, ainda será necessário muito enfrentamento para romper com o olhar reprodutivista e determinista, que defende determinadas áreas acadêmicas e pesquisas como pertencentes aos homens, pois seriam esses os detentores naturais do conhecimento científico. “A luta é contra toda uma estrutura maior. Quando a sociedade compreender que desenvolver pesquisa cientifica independe de questões de gênero, estaremos em um bom caminho”, completa a docente.

Gênero e raça
 
Para além do machismo, a professora Jalusa, do Campus de Valença, ressalta que o preconceito, quando associado a questões raciais ou a outros grupos oprimidos, como a comunidade LGBTTTI, torna o problema ainda mais grave. Provocadora, Jalusa dispara as perguntas: “Rememore sua trajetória escolar e me diga quanta/os professoras/es negras/os você teve? E na universidade?”. Para elucidar a questão, a docente de Valença relata que a Faculdade de Direito da UFBA, fundada em 1891, teve a primeira professora negra empossada apenas no último dia 25 de fevereiro. “Isso quer dizer muito sobre o quanto ainda há lacunas na representatividade e na ocupação de espaços por mulheres e, especialmente, por mulheres negras e demais grupos oprimidos na academia”, completa a feminista.
 
 
Assédio moral e machismo

Para a diretoria da ADUNEB, o assédio moral é outro obstáculo a ser considerado. Reconhecido como uma questão crítica nos departamentos da Uneb, as denúncias de assédio moral que chegam ao sindicato têm aumentado com o passar dos anos. O problema atinge mulheres e homens, mas, quando aliada ao machismo, fica ainda mais latente e difícil de combater. A situação em casos extremos tem levado professoras ao adoecimento. 
 
Resistir, lutar e transformar
 
A luta contra o machismo passa, sobretudo, pelo reconhecimento de todas as formas de opressão e a construção de estratégias de resistência contra as mesmas. É necessário dar forma e visibilidade ao machismo velado, dentro e fora da academia. É por meio da denúncia, o dedo na ferida e o enfrentamento que a luta pela igualdade de gênero ganhará novos contornos.
 
Para contribuir com a discussão e auxiliar no combate ao preconceito, representantes da ADUNEB e de outras seções sindicais do país estão finalizando a confecção de uma cartilha informativa didática contra todas as formas de opressão às minorias. A construção do material foi uma idealização da ADUNEB, e posteriormente deliberado no 7º Conad Extraordinário do ANDES-SN, realizado no ano passado. A cartilha será lançada e distribuída ao Movimento Docente de todas as universidades do pais, filiados ao Sindicato Nacional, a partir do II Encontro Nacional de Educação, que acontecerá no segundo semestre deste ano, em Brasília.