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Relatório denuncia aumento de 54% em homicídios de mulheres negras no Brasil



 No mês da Consciência Negra, Mapa da Violência 2015 mostra que a luta contra o preconceito racial e de gênero precisa ser intensificado

Ferida com vários tiros nas pernas, uma estudante do Curso de Letras, do campus da Uneb de Eunápolis, de 29 anos, dá entrada na emergência de um hospital local. A violência foi cometida pelo próprio companheiro. O fato acontecido em 29 de outubro, segundo informações dos jornais locais, teria acontecido por motivação passional. A estudante, que passará por meses de recuperação, foi atendida em uma delegacia comum, pois, em Eunápolis, não existe Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (DEAM). A vítima além de mulher é negra. 
 
Fatos como o descrito acima, relacionados à violência de gênero, sobretudo cometido em mulheres negras, estão longe de se tornarem raros no Brasil. Pelo contrário, aumentaram na última década. Dados divulgados neste mês de novembro, pelo Mapa da Violência 2015 (leia mais), apontam que em dez anos, no país, houve um salto no índice de homicídios de mulheres negras em 54%, passando de 1.864, em 2003, para 2.875, em 2013.  Enquanto isso, no mesmo período, os homicídios de brancas, do sexo feminino, reduziram 9,8%, saindo de 1.747 para 1.576.
 
Números da Organização Mundial da Saúde, presentes no Mapa da Violência 2015, evidenciam que, entre 83 países, o Brasil é o 5º no ranking mundial onde mais ocorre o homicídio feminino. Em 2013, foram 4,8 homicídios por 100 mil mulheres. No alarmante ranking de crescimento de homicídios de mulheres (por 100 mil) por estados do país, a Bahia ocupa o terceiro posto, com aumento de 159,3%, de 2003 a 2013. Na capital baiana, entre 2009 e 2013, a média de homicídios de mulheres foi de 120,25 por ano.
 
Abandono histórico
 
Para a historiadora e diretora da ADUNEB, Caroline Lima, o aumento da violência contra as mulheres negras é um reflexo da ausência de políticas de estado voltadas ao povo pobre, negro e periférico. “Após a abolição da escravatura, em 1888, o estado brasileiro nunca se preocupou em construir uma política de inclusão para o povo negro. A Lei Áurea, em tese, aboliu a escravatura, mas não ofereceu condições para a emancipação e qualidade de vida dos ex-escravos. O problema impôs à população negra viver à margem dos centros urbanos e da atenção do estado, fato que acontece até hoje”, explica a professora.
 
Caroline afirma ainda que o cenário de abandono, com falta de emprego, escolas de qualidade, saúde pública e segurança, aliado aos ataques dos setores conservadores da sociedade aos direitos humanos, têm como uma de suas consequências o aumento dos homicídios contra a mulher, sobretudo, negra. “O abandono é tanto que dos 417 municípios baianos, apenas 36 possuem Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (DEAM), e somente o município de Simões Filho oferece Casa Abrigo às mulheres vitimadas”, ressalta a diretora da ADUNEB. 
 
                                                                                                   Foto: Site Nosso Engenho
 
DEAM do Engenho Velho de Brotas - Salvador (BA)
 
Ofensiva Conservadora
 
Segundo as pesquisadoras sobre a violência de gênero, Ediane Lopes (ADUNEB) e Meire Reis (Educar na Luta – oposição APLB), o quadro de homicídios contra a mulher ganha tons ainda mais preocupantes diante da atual ofensiva conservadora. Os ataques se configuram como uma investida dos setores de direita, e foram intensificados como resposta às reivindicações populares da Jornada de Junho de 2013, na Copa das Confederações. O assunto foi debatido pelo Grupo de Trabalho (GT) nacional de políticas de classe para gênero, sexualidades, raça e etnias, do ANDES-SN, que fez reunião nos dias 06 e 07, deste mês, em Salvador (leia mais).
 
A ofensiva conservadora, que não pode ser confundida como apenas uma onda de ataques, visto que a opressão nunca deixou de existir, é liderada principalmente pelas bancadas retrógradas do Congresso Nacional. Políticos que personalizam seus mandatos e legislam de acordo com suas convicções pessoais e religiosas, a exemplo do deputado Eduardo Cunha, que por meio do Projeto de Lei 5069, tenta dificultar o abordo legal para casos de estupro.  
 
Lei Maria da Penha
 
Em vigência desde de 2006, a Lei Maria da Penha (Nº 11.340/06) foi considerada inicialmente uma conquista das mulheres contra a violência machista. Porém, após 9 anos, na prática, a norma pouco tem auxiliado contra o feminicídio. O Mapa da Violência 2015 demonstra que, depois de um declínio inicial dos homicídios, logo os assassinatos contra as mulheres voltaram a crescer. A taxa de homicídio a cada 100 mil mulheres, em 2003, era de 4,4%. Em 2007, um ano após da implantação da Maria da Penha, o índice cai para 3,9%. Porém, já em 2008, volta a 4,2%, chegando em 2013 a 4,8%.
                                                                                                                                 Arte: Mapa da Violência 2015
 
Segundo a assessora jurídica da ADUNEB, Janaína Graça, um dos principais pontos que fez a Lei Maria da Penha não atingir a eficácia desejada foi a falta de apoio orçamentário do governo federal. Os dados orçamentários do governo Dilma Rousseff mostram que a citada Lei recebe como recurso apenas R$ 0,26 por mulher.
 
A falta de estrutura impede a eficiência da Lei Maria da Penha, que poderia modificar o centenário histórico de opressão das mulheres no país. Diante do problema exposto, não é raro encontrar relatos de vítimas femininas que, ao chegarem em uma delegacia, se deparam apenas com policiais militares. Sem apoio especializado de uma assistente social ou psicóloga, ainda são desencorajadas em fazer a queixa, pois, após a denúncia, sem ter para onde ir, serão obrigadas a voltar para debaixo do mesmo teto dos agressores.
 
O baixo orçamento para combater a violência machista reflete também na Lei de Feminicídio (Nº 13.104/15), em vigor desde 09 de janeiro deste ano. No papel, a norma alterou o código penal para prever o feminicídio como um tipo de homicídio qualificado e o inclui no rol dos crimes hediondos. Sem estrutura, pessoal qualificado e DEAMs, a nova Lei tem pouca chance de se tornar eficaz.
 
Caminhos para a luta
 
Para combater o machismo, o feminicídio e a ofensiva conservadora, coletivos, organizações políticas e movimentos sociais, que atuam em defesa da causa feminista, reivindicam 1% do PIB. Segundo especialistas no assunto, o repasse do orçamento proposto traria recursos suficientes para o enfrentamento as questões de opressão de gênero.
 
                                                                                                       Foto: Divulgação MML
Campanha na rua - 1% do PIB para combater a violência contra as mulheres
 
Para uma das organizadoras, na Bahia, do Movimento Mulheres em Luta (MML), Monique Carneiro, o governo federal destina apenas 0,003% do PIB para o combate à violência contra a mulher. “Reivindicamos 1% do PIB. Com esse recurso será possível a construção de uma rede de atendimento à vítima, com centros de referência em inúmeros municípios, centros unitários nas grandes cidades, além de campanhas de prevenção e educativas a serem levadas às escolas”, comenta a especialista em saúde pública.
 
O debate nas escolas
 
Além da bandeira de 1% do PIB, que auxiliará no enfrentamento ao preconceito já enraizado na sociedade, outra frente de luta que vem sendo construída é a inserção dos temas gênero, sexualidade e questões raciais no currículo das escolas de ensino fundamental e médio. A proposta busca abranger todo o território nacional.
 
Sem a mudança da estrutura curricular atual, o país continuará a formar meninos e meninas sob a ótica machista e racista. Na luta por um novo paradigma, alguns avanços já foram conquistados. A partir da intervenção do Ministério Público, que tem barrado os ataques da bancada conservadora do Congresso Nacional, o Conselho Nacional de Educação optou por orientar a inclusão do tema no currículo escolar. Na Bahia, o Conselho Estadual segue o mesmo caminho. Porém, nos municípios o embate com as forças reacionárias, sobretudo, as religiosas tem barrado a debate nas instituições municipais de ensino. Fato que além de preocupar, exigirá mais força, organização e poder de enfrentamento da militância.
 
Para Ana Karen Oliveira, militante do Coletivo Feminista Classista Ana Montenegro, a igualdade entre os sexos está longe de ser algo real, como é divulgado pela mídia de grande circulação e ensinado nos espaços educacionais. E nesse sentido, analisa como essencial a inserção no ensino fundamental e médio de questões referentes a gênero, raça/etnia e sexualidade. “A educação deve refletir sobre a situação de dominação e opressão que as mulheres, população LGBT e o povo negro estão sujeitos. Deve ainda formar indivíduos a partir de uma educação não sexista e não racista, conscientes da necessidade de mudanças e lutas contra esse atual modelo social, que reforça as desigualdades entre os sexos e raças/etnias para manter sua contínua reprodução, afirma Ana Karen.
 
Denuncie – Ligue 180
 
Apesar das dificuldades e da falta de estrutura nas delegacias, as especialistas e militantes da causa feminina consideram fundamental o ato da denúncia para o combate ao machismo e o preconceito racial. Caso não encontre uma delegacia, o recomendado é utilizar o Disk Denúncia, pelo número 180. O atendimento acontece em todo o país. É a partir da denúncia que se poderá buscar o enfrentamento aos problemas. Além disso, permite o melhor mapeamento da violência de gênero e racismo no Brasil, assim como aprimorar as formas de combatê-los.  
 
Para que a denúncia seja realizada o encorajamento e apoio de amigos e familiares é essencial. São vários os fatores que fazem com que a mulher pense em se calar diante da agressão. Alguns dos obstáculos são a fragilidade emocional da mulher agredida; o medo que o homem se vingue nela ou em seus filhos; a dependência financeira que tem do agressor; a necessidade de continuar na mesma casa que o homem que a agrediu por falta de outra moradia, entre outros problemas. Situações que surgem também como consequência da falta de políticas de estado eficazes, que não atendem às demandas nos grupos periféricos, minorias que são excluídos econômica e socialmente.  
 
 
Futuro
 
Se as dificuldades estão postas à mesa, também é certo que existem caminhos para a luta. Mais certo ainda é que inúmeros militantes, ativistas e organizações progressistas de esquerda, que atuam em defesa dos direitos humanos, estão prontos para intensificar a luta. Batalha que seguirá até que mulheres como a estudante de Letras, de Eunápolis, possa decidir sem risco de morte sobre sua própria vida amorosa. Chegará o momento em que a história das duas capitãs negras, que fizeram história nesta semana, ao comandarem juntas, pela primeira vez, um Boeing 737, no Zimbábue, será um fato corriqueiro. Acontecimento que hoje ainda é visto como façanha, pois, segundo dados do Relatório da Sociedade Internacional de Pilotas de Aeronaves, no mercado de capitães dos voos comerciais os homens ocupam 97% dos postos de trabalho. 
 
                                                                                                Foto: Reprodução Facebook 

Pilotas Chipo Matimba e Elizabeth Petros - vitória feminina

Fontes:
 
Mapa da Violência 2015 - FLACSO, ONU Mulheres, OPAS/OM e a SPM divulgam novo Mapa da Violência 2015: Homicídio de Mulheres no Brasil.
 
Site Sul Bahia News
 
Jornal Extra